quarta-feira, 28 de outubro de 2015

"Só a bailarina que não tem..."

Todo mundo tem um lado meio torto, um defeito bobo, o direito ao "saco cheio", só a bailarina que não tem. Todo mundo tem o dia da farra, o dia de encher a cara e soltar palavrão, a bailarina não. Quem nunca teve uma pereba na perna, uma mania chata, uma espinha no nariz ou várias na testa, um cravo interno, olheiras cavadas, bafo de leão, unha encravada, um/uns fio(s) de cabelo branco, um dedo meio torto ou saiu atrasada(o) com a roupa amassada? Pobre da bailarina, tão arrumadinha, tão doce, pudica, estudiosa e cheirosa, não há espaço para imperfeição. A bailarina não goza, não se atrasa, não demora, não se esquece, não balança nem cai. Não desiste, não chora, não erra e nem faz nada. Uma mocinha tão quietinha que parece até de mentirinha. Ah bailarina que se cansa com tanta cobrança desse mundo de gente chata e idiota que pensa que para conseguir estar na ponta do pé não pode ter chulé, passou dos 30 tem que casar, não pode usar roupa curta, não pode xingar, tem que saber cozinhar, não pode arrotar, peidar é um pecado, não pode descer do salto, blá blá blá... Quantas bailarinas fingem por aí, todas maquiadas, esticadas, falsificadas? Escondem os seus defeitos feios nos efeitos dos cosméticos, na imagem de "mulher honesta" recatada, escondem os seus medos por detrás de risadas desesperadas? A bailarina que dança com a verdade não dribla a sua felicidade para satisfazer o aroma de deusa, ela sabe que para se dançar com a felicidade é preciso se despir das balelas, das bajulações e dos aplausos que enganam o seu ego. E então ela chora, esquece-se da vaidade e das futilidades que a desconforta, desiste de alimentar o seu ego para saciar a sua auto-estima que enchia a sua barriga de orgulho. Enxerga que não é disso que ela precisa, pois já não faz sentido viver a vida de um espetáculo forjado à espera da congratulação da platéia. E então ela vai embora, sem buscar aplausos e sorrisos falsos, sem o peso e o vazio da frustração de não ter agradado. A bailarina abandona o palco, deixa de ser o centro das atenções e agora está de volta para o seu coração, lá de onde ela veio e de onde ela se perdeu por seguir dançando com as expectativas e promessas alheias, apertando lá dentro todos os seus medos e anseios. Agora ela não é apenas uma bailarina, é uma mulher que sabe dançar com a vida, respeitar a si e amar-se.

Por Luiza Rodrigues dos Santos
Texto baseado na música Ciramda da bailarina de Chico Buarque.

Pra fechar com o poema mais bonito:

A bailarina

Esta menina
tão pequenina
quer ser bailarina.
Não conhece nem dó nem ré
mas sabe ficar na ponta do pé.

Não conhece nem mi nem fá
Mas inclina o corpo para cá e para lá

Não conhece nem lá nem si,
mas fecha os olhos e sorri.

Roda, roda, roda, com os bracinhos no ar
e não fica tonta nem sai do lugar.

Põe no cabelo uma estrela e um véu
e diz que caiu do céu.

Esta menina
tão pequenina
quer ser bailarina.

Mas depois esquece todas as danças,
e também quer dormir como as outras crianças.

Cecília Meireles

http://somdecordemim.zip.net/arch2006-10-08_2006-10-14.html

Nenhum comentário:

Postar um comentário